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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A INTELIGÊNCIA E A PERCEPÇÃO

Fragmentos do capítulo 3 de: PIAGET, Jean. Psicologia da inteligência. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1958. pág. 83-92


A percepção é o conhecimento que temos dos objetos ou dos movimentos por contato direto e atual. (...)

Segundo a Gestalt, as estruturas intelectuais preexistem no todo ou em parte, desde o primeiro momento, sob a forma de organizações comuns à percepção e ao pensamento. Essa teoria descreve as leis da estruturação do conjunto que regem tanto a percepção, a motricidade e as funções elementares, como o próprio raciocínio e, particularmente, o silogismo (Wertheimer). (...)

A hipótese de uma relação estrita entre a percepção e a inteligência foi sustentada, em todos os tempos, por alguns e rejeitada por outros. Somente no século passado os autores iniciaram a buscar apoio experimental para suas teses, sendo que anteriormente inúmeros filósofos refletiram sobre esta questão. (...)

Hering (respondendo a Helmholtz) afirmava que a intervenção do conhecimento intelectual em nada modificava uma percepção. Experimentamos a mesma ilusão de ótica mesmo depois de conhecer os valores objetivos dos dados percebidos. Assim concluía que o raciocínio não intervém na percepção. (...)

Von Ehrenfels descobriu, em 1891, as qualidades perceptivas do conjunto, tais como a de certa melodia que se reconhece, embora uma transposição modifique todas as notas (não podendo nenhuma sensação elementar permanecer a mesma). (...)

Podemos esperar, segundo a escola de Berlim, uma explicação acerca da inteligência a partir das estruturas perceptivas, ao invés de fazer intervir, de maneira incompreensível, o raciocínio na percepção como tal. (...)

A teoria da forma renovou a posição de um grande número de problemas e sobretudo forneceu uma teoria completa sobre a inteligência que permanecerá, mesmo para os seus adversários, um modelo de interpretação psicológica coerente.

A idéia central da teoria da forma afirma que os sistemas mentais jamais se constituem pela síntese ou pela associação de elementos, dados em estado isolado, antes de sua reunião, mas consistem sempre em totalidades organizadas, desde o início, so uma forma ou estrutura de conjunto. Assim, uma percepção não é mais síntese das sensações prévias: ela é regida em todos os níveis por um campo, cujos elementos são interdependentes pelo mesmo fato de serem percebidos em conjunto. Um só ponto negro, por exemplo, visto numa grande folha de papel, não seria percebido como elemento isolado, embora único, conquanto se destaque como caráter de figura sobre um fundo constituído pelo papel, e pelo fato de que esta relação, figura x fundo, supõe a organização do campo visual inteiro. Isto é tanto mais certo quando, a rigor, poderíamos ter visto a folha, como o objeto (a figura) e o ponto negro, como um buraco, isto é, como a única parte visível do fundo. Por que então preferimos o primeiro modo de percepção? E por que se em vez de um ponto, víssemos três ou quatro bem próximos, não poderíamos reuni-los em forma virtual de triângulos ou quadriláteros? Porque os elementos percebidos em um mesmo campo são, imediatamente, ligados em estruturas de conjunto, obedecendo a leis precisas, que são as leis de organização.

Estas leis de organização que regem todas as relações de um campo são, na hipótese gestaltista, apenas leis de equilíbrio, regendo, ao mesmo tempo, as correntes nervosas, determinadas pelo contato psíquico com os objetos exteriores, e pelos próprios objetos, reunidos num circuito total, abarcando, pois, simultaneamente, o organismo e seu meio próximo. Assim, deste ponto de vista um campo perceptivo (ou motor, etc.) é comparável a um campo de forças (eletromagnéticas, etc.) e é regido por princípios análogos de mínimum, de mínima ação etc. Em presença de múltiplos elementos imprimimos-lhe, então, uma forma de conjunto que não é uma forma qualquer, mas a mais simples possível que exprime a estrutura de campo; serão pois as regras de simplicidade, de regularidade, de simetria, de proximidade etc. as que determinarão a forma percebida. Daí uma lei essencial chamada de prenhez de todas as formas possíveis, a que se impõe é sempre melhor, a melhor equilibrada. Demais, uma boa-forma é sempre suscetível de ser transposta, exatamente como a melodia, da qual mudamos todas as notas. Mas esta transposição, que demonstra a independência do todo em relação às partes, explica-se também pelas leis de equilíbrio: as relações são as mesmas entre os novos elementos que terminam na mesma forma de conjunto que as relações entre elementos anteriores, não graças a um ato de comparação, mas a uma reformação do equilíbrio, exatamente como a água de um canal, que recobra a mesma forma horizontal, mas em níveis diferentes, depois da abertura de cada comporta. A caracterização dessas boas-formas, bem como o estudo dessas transposições, provocaram inúmeros trabalhos experimentais, de verdadeiro interesse.

O que se deve notar, antes de tudo, como essencial à teoria, é que as leis de organização são concebidas como independentes do desenvolvimento, e, por conseguinte, comuns a qualquer nível. Fácil é de perceber esta afirmação, se a limitarmos à organização funcional ou equilíbrio sincrônico dos comportamentos, pois a necessidade desse último rege os níveis em qualquer grau. (...) Assim é que os psicólogos da Forma se esforçaram, acumulando impressionante material, para mostrar que as estruturas perceptivas são as mesmas na criança e no adulto e, sobretudo, nos vertebrados de qualquer categoria. (...)

Três aplicações da teoria da forma ao estudo da inteligência devem ser especialmente consideradas: a de Köhler, sobre a inteligência sensório-motora, a de Wertheimer, sobre a estrutura do silogismo, e a de Duncker sobre o ato da inteligência em geral.

Para Köhler a inteligência aparece quando a percepção não se prolonga diretamente em movimentos suscetíveis de assegurar a conquista do objetivo. Um chimpanzé, na sua jaula, procura alcançar uma fruta que se encontra fora do alcance de sua mão; uma objeto intermediário é então necessário, e o seu emprego definirá a complicação própria da ação inteligente. Em que consiste esta última? Se um bastão for posto à disposição do símio, mas numa posição qualquer, será visto como um objeto indiferente. Colocado paralelamente ao braço poderá ser subitamente percebido como possível prolongamento da mão. Até então sem significação, o bastão passa a tê-la, pelo fato de sua incorporação na estrutura do conjunto. O campo, pois, passará a ser reestruturado e essas súbitas reestruturações caracterizam, segundo Köhler, o ato da inteligência: a passagem de uma estrutura pior para uma melhor constitui a essência da compreensão, simples continuação, conseqüentemente, mas mediata ou indireta da própria percepção.

Este mesmo princípio explicativo encontramos em Wertheimer, na sua interpretação gestaltista do silogismo. A premissa maior é uma forma comparável a uma estrutura perceptiva. Todos os homens constitui um conjunto que se representa centrado no interior do conjunto de mortais. A premissa menor procede do mesmo modo: Sócrates é um indivíduo centrado no círculo de homens.

A operação que tirará de tais premissas a conclusão: portanto, Sócrates é mortal, vem, conseqüentemente, apenas estruturar o conjunto, fazendo desaparecer o círculo intermediário (homens), depois de tê-lo situado com seu conteúdo no grande círculo (os mortais). O raciocínio é pois uma recentração: Sócrates é como descentrado da classe de homens para tornar a recentrar-se na classe dos mortais. O silogismo depende assim da organização geral das estruturas. (...)

Finalmente, Duncker estuda as relações dessas compreensões bruscas (Einsicht, Insight ou reestruração inteligente) com a experiência, para dar o tiro de misericórdia no empirismo associacionista, que a noção de Gestalt contradiz desde o princípio. Ao analisar os diversos problemas da inteligência ele conclui que em todos os domínios a experiência adquirida desempenha um papel somente secundário no raciocínio. A experiência não tem significação para o pensamento, senão em função da organização atual. A estrutura do campo presente determina os possíveis apelos às experiências passadas, ora tornando-as inúteis, ora disciplinando uma evocação e uma utilização das recordações. O raciocínio é, assim, um combate que forja suas próprias armas, e tudo se explica por leis de organização, independentes da história do indivíduo, assegurando, no total, uma unidade profunda das estruturações do todo nível, desde as formas perceptivas elementares as suas mais altas formas de pensamento. (...)

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UFRGS - FACED - Psicologia da Educação I - Professor Paulo Francisco Slomp - slomp@ufrgs.br

http://www.ufrgs.br/psicoeduc

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* Observe que os fragmentos acima foram selecionados de maneira a fornecer apenas uma descrição da psicologia da Gestalt. Para uma maior compreensão crítica remetemos o leitor ao texto fonte e também ao artigo de Piaget "O que subsiste da teoria da Gestalt".

In Problemas de Psicologia Genética. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores)

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